A tentativa de alguns parlamentares em reger por meio de lei nacional as atividades, carreiras, estruturas administrativas, denominações, cor de uniforme e tudo o mais que for possível em relação às Guardas Municipais, a mim aparenta um modelo contrário à autonomia política e administrativa criada na Constituição Federal para os entes da Federação, senão, vejamos o que explica alguns conceitos sobre federação, autonomia política e administrativa:
A Autonomia dos Entes Federativos
O federalismo no Brasil é formado por quatro entes, e são eles a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.
Quando falamos em autonomia dos entes federativos, falamos em repartição de competências legislativas, administrativas e tributárias.
O princípio que norteia esta repartição é o da predominância do interesse, este princípio expressa nitidamente que cada estado possui seus interesses e se manifesta da seguinte maneira:
- nos assuntos gerais predomina o interesse da União;
- nos assuntos regionais os Estados-Membros;
- nos assuntos locais os Municípios e;
- nos assuntos regionais e locais o Distrito Federal.
O legislador constituinte estabeleceu alguns pontos básicos para o critério de repartição de competências administrativas e legislativas sendo estes a reserva de campos específicos de competência administrativa e legislativa:
- União, poderes enumerados;
- Estados, poderes remanescentes;
- Município, poderes enumerados.
Em síntese cada ente possui suas competências, não podendo um invadir a alçada do outro, para que não aja assim a inconstitucionalidade dos atos de cada um destes entes.
Não podemos esquecer que os entes federados também possuem autonomias. Não há hierarquia entre os entres federados. Assim, não há hierarquia entre União, Estados e Municípios. Portanto, para realizar o que é de sua competência, o Municio não está subordinado nem ao Estado nem à União.
Aos entes federados a Constituição reserva uma autonomia, maior ou menor, conforme o pacto, o que lhes permite atuar com certa liberdade dentro dos padrões definidos na Carta Política.
Dizer que o Brasil é uma República Federativa significa reconhecer e proclamar a autonomia dos entes formadores da Nação.
Tal autonomia tem inúmeras consequências e implicações, mas a mais elementar delas é o reconhecimento de que cada Estado-membro regula e disciplina, por lei própria, sua respectiva administração. Cabe exclusivamente a cada Estado-membro dispor sobre a organização e o funcionamento de sua estrutura administrativa, de seus órgãos e de suas entidades, bem como instituir suas fontes de custeio, dispondo da legislação fiscal.
A federação é um princípio fundamental na Constituição brasileira.
Tem-se autonomia como a faculdade conferida ou reconhecida a uma entidade de criar as suas próprias normas. Daí o entendimento mais comumente aceito no direito de constituir autonomia a capacidade política de uma entidade para governar-se a si mesma segundo leis próprias, criadas em esfera de competência definida por um poder soberano.
A autonomia das entidades federadas configura-se pela garantia de auto-organização, de autogoverno e de autoadministração de todas elas.
A autonomia das entidades federativas deve ser preservada, sob pena de vermos comprometida a própria estrutura da federação, mas sem desconsiderar que o limite dessa mesma autonomia encontra-se estampado no texto constitucional.
Na Constituição brasileira de 1988 os municípios foram elevados ao patamar de Entes Federados. No entanto a falta de atenção faz com que alguns legisladores, e na prática alguns administradores, deixem de observar essa autonomia, fazendo-o parecer ainda como um ente subordinado à União ou ao Estado. É o quem vem acontecendo ao observar a tentativa do Congresso Nacional de regulamentar as funções e funcionamentos das Guardas Municipais.
De acordo com a Constituição Federal, no seu artigo 144, parágrafo 8º, a criação de Guardas Municipais é algo facultativo para os Municípios.
Ainda dentro dessa mesma redação, a Constituição informa que a competência de atuação das Guardas Municipais serão definidas conforme dispuser a lei.
E a que lei a Constituição se refere? Lei Nacional ou Lei Municipal?
Trata-se de um dispositivo legal bastante controverso na doutrina. Alguns pesquisadores entendem que a faculdade de dispor sobre o funcionamento da Guarda Municipal contida na Constituição Federal com o termo “conforme dispuser a lei” se refere ao fato da necessidade de ser criada uma lei nacional que regulamente as atribuições, funcionamentos e carreiras de todas as Guardas Municipais do Brasil.
Para outros, essa expressão está relacionada à faculdade de cada município em dispor sobre a destinação da sua Guarda Municipal – respeitados os limites constitucionais; definindo o seu funcionamento; sua carreira e sua imagem (uniformes, denominações etc.).
O fato é que em cada município a Guarda Municipal atua da forma que rege a legislação local. Algumas portam arma de fogo, outras, mesmo possuindo autorização legal, optaram por não portar (ex. GM do Rio de Janeiro). A grande maioria adotou o azul marinho como cor do uniforme. Existem as mais variadas denominações para os cargos, e as mais variadas carreiras.
Quanto às atribuições, estas também variam de município para município – ex: atuação na fiscalização no transito; fiscalização do comércio das vias públicas; proteção das pessoas; proteção ambiental; defesa civil; fiscalização da lei do silêncio, mediação de conflitos etc.
Por conta de todas essas variações, a nós nos parece que o termo “como dispuser a lei” está sendo melhor aproveitado na autonomia de cada município em legislar sobre a função e a atribuição de cada guarda municipal voltada para o atendimento das necessidades locais.
Toda Guarda Municipal faze parte de um ente federado - o município; portanto cabe a este decidir sobre sua criação, extinção, funcionamento, carreira, funções, competências de atuação – desde que não desrespeite as demais competências dos outros entes federados – cor do uniforme, denominações dos cargos etc.
Por que não tentaram fazer um “marco regulatório” com as instituições policiais mais antigas? Por que não houve uma tentativa de regulamentar as polícias civis e militares?
Não houve qualquer tentativa porque nesse caso respeitaram o pacto federativo, não enxergaram os Estados como unidade subordinada do nosso sistema federado. Enxergar o município como subordinado parte de uma visão antiga, anterior à Constituição brasileira de 1988, e que vem se mantendo assim até hoje.
O Projeto de Lei 1332, já aprovado na Câmara dos Deputados, tenta recriar essa subordinação, parte dela fazendo com que a Guardas Municipais (portanto, dos Municípios) se sujeite às regras nacionais, e mais uma parte, resultante da subordinação que pretende submetê-las ao crivo do Ministério da Justiça.
Vejamos abaixo alguns - apenas alguns - exemplos de tentativas de invasão de competência da União na autonomia administrativa e política dos municípios por meio de regulamentação das Guardas Municipais, com nossos grifos e comentários sobre os casos de aparente intervenção indevida de um ente federativo sobre o outro:
Art. 1º Esta Lei institui normas gerais para as guardas municipais, disciplinando o § 8º do art. 144 da Constituição Federal (normas gerais aparentam retirar dos municípios a autonomia para regular situações não previstas na legislação nacional).
Art. 5° São competências específicas das guardas municipais, respeitadas as competências dos órgãos federais e estaduais: (todas as competências elencadas nos parágrafos deste artigo podem ser criadas a partir de lei municipal, e fazê-las de forma taxativa em legislação nacional pode criar um limite antes não existentes aos entes municipais)
Art. 6° O Município pode criar, por lei, sua guarda municipal (desde a criação da Constituição brasileira 1988 os municípios sempre tiveram essa prerrogativa).
Parágrafo único. A guarda municipal é subordinada ao chefe do Poder Executivo municipal (a quem mais seria?).
Art. 7° As guardas municipais não poderão ter efetivo superior a: ... (não encontramos qualquer impedimento de ordem técnica, orçamentária ou de âmbito de segurança nacional que justifique tal limitação – segundo alguns teóricos, quanto mais agentes de segurança nas ruas, mais seguras elas ficam).
Art. 9° A guarda municipal é formada por servidores públicos integrantes de Carreira única e plano de cargos e salários, conforme disposto em lei municipal(trata-se de intromissão mais do que indevida, ou até um desrespeito não justificado, querer dizer que o município não terá autonomia para estipular a forma de provimento de cada cargo, ou de cada nível na carreira, junto à sua instituição guarda municipal) .
Art. 11. O exercício das atribuições dos cargos da guarda municipal requer capacitação específica, com matriz curricular compatível com suas atividades.
Parágrafo único. Para fins do disposto no caput, poderá ser adaptada a matriz curricular nacional para formação em segurança pública, elaborada pela Secretaria Nacional de Segurança Pública - SENASP do Ministério da Justiça.(ora, se um município desejar criar uma guarda municipal apenas para atuação na fiscalização do trânsito, ou portaria de repartições públicas com atuação desarmada, nada justificaria ter que se submeter a regras nacionais, em especial a normas decorrentes de matriz curricular)
Art. 12. É facultada ao Município a criação de órgão de formação, treinamento e aperfeiçoamento dos integrantes da guarda municipal, tendo como princípios norteadores os mencionados no art. 3°.
§ 1º Os Municípios poderão firmar convênios ou consorciar-se, visando ao atendimento do disposto no caput deste artigo.
§ 2º O Estado poderá, mediante convênio com os Municípios interessados, manter órgão de formação e aperfeiçoamento centralizado, em cujo conselho gestor seja assegurada a participação dos Municípios conveniados.
§ 3º O órgão referido no § 2º não pode ser o mesmo destinado à formação, treinamento ou aperfeiçoamento de forças militares (não encontramos aqui qualquer justificativa técnica para criar-se tal impedimento – se for da vontade do município, por meio de convênio, formar uma guarda em uma academia da polícia militar – as quais em seus currículos de formação não ensinam nada de nocivo à nação ou à população – há que se respeitar essa vontade do executivo municipal).
Art. 13. O funcionamento das guardas municipais será acompanhado por órgãos próprios, permanentes, autônomos e com atribuições de fiscalização, investigação e auditoria, mediante:
I — controle interno, exercido por corregedoria, naquelas com efetivo superior a 50 (cinquenta) servidores da guarda e em todas as que utilizam arma de fogo, para apurar as infrações disciplinares atribuídas aos integrantes de seu quadro; e
§ 1º O Poder Executivo municipal poderá criar órgão colegiado para exercer o controle social das atividades de segurança do Município, analisar a alocação e aplicação dos recursos públicos, monitorar os objetivos e metas da política municipal de segurança e, posteriormente, a adequação e eventual necessidade de adaptação das medidas adotadas face aos resultados obtidos.
§ 2º Os corregedores e ouvidores terão mandato cuja perda será decidida pela maioria absoluta da Câmara Municipal, fundada em razão relevante e específica prevista em lei municipal.
Art. 14. Para efeito do disposto no inciso I do caput do art. 13, a guarda municipal terá código de conduta próprio, conforme dispuser lei municipal.
Parágrafo único. As guardas municipais não podem ficar sujeitas a regulamentos disciplinares de natureza militar.
Art. 15. Os cargos em comissão das guardas municipais deverão ser providos por membros efetivos do quadro de Carreira do órgão ou entidade (mais uma intromissão na forma de provimento de cargos públicos municipais).
§ 2º Para ocupação dos cargos em todos os níveis da Carreira da Guarda Municipal,deverá ser observado o percentual mínimo para o sexo feminino (poderia aqui, se desejasse, inovar ao criar as vagas nos mesmos moldes da Polícia Civil de São Paulo, onde não há divisão de cada vaga entre masculino e feminino – a mesma vaga serve tanto a um quanto ao outro gênero – assume a vaga quem melhor se classifica), definido em lei municipal.
Art. 16. Aos guardas municipais é autorizado o porte de arma de fogo,conforme previsto em lei (se já admite o pretenso legislador deste ordenamento que há uma lei prevendo o porte de arma de fogo, para que dizer o que já está dito? – esse tipo de artigo evidencia uma total falta de experiência no assunto em que se aventura a tratar).
Art. 21. As guardas municipais utilizarão uniforme e equipamentos padronizados, preferencialmente, na cor azul-marinho.
Observem que em alguns casos usa-se o termo “deverão”, noutros “poderão”, noutro “é facultado”, e assim por diante. São esses termos um tipo de mandamento, um limite ou em alguns casos um mandamento a ser seguido pelos municípios em assuntos que até então eram de sua livre autonomia para decidir.
Não coaduno com medidas que tentem retroagir as conquistas dos municípios no que tange a autonomia política e administrativa. Acredito que devemos avançar cada vez mais, porque ainda existem as submissões veladas, ora perante os Estados, ora perante a União, e a maioria delas se revelam por meio da dependência financeira, onde os entes com menos receita se sujeitam à vontade política e se submetem a outros entes federados em troca de empréstimos ou doações.
Não adianta apenas avançar me termos de legislação constitucional. Há que se conquistar na prática, e há que se impedir tentativas como essa trazidas no PL 1332 de tornar os municípios novamente subordinados aos Estados e à União.
Referências:
1 –
2 –