Tradutor

terça-feira, 25 de março de 2014

Poder Público e Vontade Popular – Até que ponto a opinião do leigo pode contrariar uma decisão técnica?


Com louvor governos vêm se rendendo à participação popular para colaborar nas suas tomadas de decisões. Estão sendo criados conselhos onde os membros são pessoas da comunidade, eleitos pela comunidade, para deliberar a respeito de todos os segmentos que envolvem ação do poder público – Já existem os conselhos de segurança pública; conselhos gestor de parques; conselhos participativos das subprefeituras; conselho de administração hospitalar, conselho de habitação entre outros.

A maioria desses conselhos promove decisões de cunho vinculativo, ou seja, suas deliberações devem ser acolhidas e colocadas em prática pelo administrador do órgão para o qual o conselho foi criado. Esse modelo de gestão participativa seria perfeito se não fossem por dois problemas que passo a descrever:

Primeiro problema: A falta de critérios para decidir qual seria a validade do poder vinculativo de uma decisão do conselho que afrontasse um parecer técnico da Administração Pública.

Vamos imaginar, a título de exemplo, uma situação onde os “representantes” da comunidade (e aqui evito a falar representante do povo, deixando esse termo exclusivamente para os parlamentares eleitos democraticamente e com mandato), como os conselheiros de parques ou de segurança, decidissem que a Guarda Civil Metropolitana deveria atuar sem arma de fogo - e para ser sincero, já vi prefeituras fazendo enquetes virtuais e até plebiscito para saber se devem armar, e em alguns casos, desarmar a guarda municipal.

Para quem é técnico e atua na área é bem sabido que sem a arma de fogo o risco para o profissional de segurança pública - e a quem ele protege - aumentaria absurdamente, e a capacidade de atuação seria reduzida a quase nada. Isso é bastante fácil observar ao avaliar os constantes chamados para a guarda municipal interceder sobre problemas em escolas que possuem vigias desarmados, os quais quase sempre alegam impossibilidade de agir diante da desproporcional ameaça que sofrem dos transgressores e receio decorrente da suspeita de haver letalidade nos instrumentos que eles utilizam em suas ações (um guarda municipal desarmado ficaria em iguais condições a desse vigia).

Traçando mais um paralelo, temos que reconhecer que quem governa, governa para o povo, de quem emana o seu poder e diretriz para a tomada de decisões – e isso pode levar ao erro de pensar que se um manda o outro apenas obedece. Não é bem assim que funciona! Vamos imaginar que na minha casa mando eu – e mando mesmo (risos). Pois bem! Não é pelo fato de poder mandar no que é meu que eu posso fazer o que eu quero. Ora, se almejo construir uma obra impraticável, ainda que eu pague e mande, o engenheiro e o construtor é quem saberão o que pode e o que não pode ser realizado. Jamais edificariam algo que viesse a colocar a minha vida em risco. No outro exemplo temos o advogado que, mesmo recebendo honorários e ordens expressas, jamais impetraria uma ação que viesse a prejudicar o seu cliente (será?)


A mesma interferência da opinião do leigo sobre a do técnico pode ocorrer ainda em hospitais, onde a última palavra sempre deve ser a do profissional de saúde; na questão das obras públicas em que deve ser respeitada a decisão de arquitetos e engenheiros; ou nas escolas, onde deve prevalecer o parecer do pedagogo, e assim por diante.

Acredito que o mais razoável seja aceitar que o parecer do técnico deve sempre prevalecer mesmo diante da vontade popular.

Assim, esse é e continuará sendo um dos grandes desafios nos lugares se pretende instalar modelos de gestão participativa, ou seja, saber até onde o leigo pode decidir, e saber separar as decisões técnicas dos anseios da população, para que uma decisão equivocada não venha a prejudicar a viabilidade nem a qualidade dos trabalhos desenvolvidos pelo serviço público. 

Segundo problema: A ocupação das cadeiras de conselheiros por filiados dos partidos que estão no governo ou apadrinhados de parlamentares como forma de extensão do mandato.

Para que haja uma verdadeira participação popular as cadeiras de conselheiros devem ser preenchidas em regra por pessoas neutras, ou na melhor das hipóteses, por pessoas desvinculadas ao governo. Seria preferível que os conselheiros eleitos fossem líderes comunitários; lideranças de bairros; presidentes de associações; presidentes de conselhos regionais; autoridades religiosas; comerciantes; profissionais liberais ou qualquer outro tipo de pessoa que não tenha vínculo com a administração pública.
                                          
Os militantes do partido de situação e os apadrinhados de parlamentares já gozam de certo acesso ao governo; já exercem certas influências nos palcos das decisões políticas e administrativas. Eles também possuem maiores condições de serem eleitos por conta de sua influência política e o apoio de seus padrinhos, de modo que acabariam tirando a oportunidade de tantos outros interessados em contribuir com o debate, mas que não contam com essas vantagens de buscar os votos necessários a fim de que a sua candidatura tenha sucesso.

O Conselho Participativo visa encurtar a distância entre a população e o administrador público – secretários, Subprefeitos, Diretores etc. Desta forma, concluo que foi feito para pessoas do bairro que, somente se tornando conselheiros é que passariam a ter acesso total e direto à administração pública.

Os filiados políticos e colaboradores de parlamentares – pessoas que já são bem próximas do governo - ao se lançarem ao cargo de conselheiros, além de estarem em busca de uma porta que já estava aberta a eles, acabam por tirar a oportunidade de se formar um grupo com maior participação popular, tiram a oportunidade de a administração coletar maior e melhor contribuição de quem realmente vive no bairro, que sabe o que pode ser bom para a sua região; que sabe qual é o problema, onde ele está e como pode ser resolvido.

Outro problema oriundo desse loteamento das cadeiras de conselheiros, e o mais nocivo de todos, decorre da possibilidade de que os aliados do governo estejam ali apenas para fazer valer a vontade desse mesmo governo, impedindo que haja oposição, críticas e reclamações; fazendo com que as decisões do conselho sejam sempre votadas a favor do “patrão” - em um processo de votação onde a maioria sempre segue a orientação ideológica do partido ou do parlamentar que os colocou ali.

A atuação dos conselheiros deve ser de colaborador, orientador em um processo de construção de ideias e soluções, não uma simples aceitação e ratificação da vontade do administrador.

A Gestão Participativa começou a ter destaque no governo de Olívio Dutra, quando este foi prefeito da capital do Rio Grande do Sul.  Chegou a ter repercussão mundial. Já foi alvo de estudo por outros países. Contudo, por conta das inconsistências acima descritas, acabou perdendo parte da sua credibilidade e notoriedade fora do Brasil.

A cidade de São Paulo conseguiu um avanço ao impedir que detentores de cargos em comissão na prefeitura se tornassem candidatos aos conselhos participativos. Porém isso não foi suficiente. Pelo resultado que vimos no recente pleito, alguns dos vereadores emplacaram seus apadrinhados e o mesmo aconteceu com partidos políticos, os quais elegeram muitos dos seus suplentes de parlamentares. Espero que funcione bem e que esses conselheiros saibam separar a causa pública da ideologia partidária e da vontade do administrador. Espero que façam as suas interpelações a favor do bairro que eles representam.

Para quem acredita nessa forma de governar e que de fato quer promover a democracia, fica a dica: deixem bem claro até onde o poder deliberativo do conselho vincula a decisão do administrador público e; se a ideia é realmente fortalecer o debate e colher o maior número de contribuições possíveis, criem ferramentas que impeçam o loteamento das cadeiras de conselheiros por pessoas que de uma forma ou de outra já fazem parte do governo.